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A contribuição africana nas tradições doceiras

As raízes do saber fazer


Falar sobre a origem das tradições doceiras na região de Pelotas e na Antiga Pelotas (municípios de Arroio do Padre, Capão do Leão, Morro Redondo e Turuçu) remonta ao ciclo do charque e do açúcar no Brasil. Nesse cenário, é importante lembrar as dinâmicas de ocupação agrária do Rio Grande do Sul em sua complexidade étnico-racial. Porém, não se pode esquecer, que, anteriormente à colonização europeia (iniciada no Séc. XVIII), grupos indígenas Tapes e Tupi Guarani ocupavam o território e trouxeram contribuições culturais com o feitio das cestarias, utilizadas na secagem dos doces, por exemplo. 

No final do Séc. XIX, o Rio Grande do Sul reproduzia o modelo de ocupação das áreas fronteiriças baseado na escravização e no latifúndio propiciados através da doação de sesmarias aos militares – que assegurava o domínio português em relação à Espanha (Pinheiro & Rodrigues, 2015). Historiadores descrevem que, no final do Séc. XIX, o Rio Grande do Sul apresentava cerca de 21% de sua população composta por pessoas escravizadas – sendo estas as responsáveis pela manutenção de toda cadeia produtiva do charque.

Devido à forte repressão existente nas charqueadas pelotenses, comunidades negras foram sendo formadas ao longo do tempo, na Serra dos Tapes. Tendo como um dos protagonistas os escravizados fugidos ou alforriados, a ocupação do território foi feita também por lavradores nacionais livres e por imigrantes europeus trazidos pelos projetos de colonização (estatais e privados).

Nas pequenas áreas de aquilombados presentes na Serra dos Tapes, os cultivos mais comuns eram milho, feijão, diversas variedades de abóbora, melancia de porco, batata e batata-doce. Havia também a criação de animais, principalmente de porcos. Algumas famílias mantinham pequenas hortas com verduras, hortaliças, temperos e também árvores frutíferas (Pinheiro & Rodrigues, 2015). Do milho, até nos dias atuais, são feitos a canjica doce, a polenta e o bolo com torresmo. 

Nesses territórios, o doce de melancia de porco, de batata-doce e de abóbora (em calda, com ou sem adição de coco e o cristalizado) são exemplos do saber-fazer africano em comunhão com o dos colonos – saberes estes ainda cultivados na tradição doceira colonial.  

No espaço urbano pelotense, historiadores revelam que foi apenas no começo do século XX que o saber-fazer das doceiras desenvolveu-se como uma atividade econômica. Entre os anos 1920 e 1930, a crise do sistema econômico baseado no charque deve-se à introdução do sistema de refrigeração por eletricidade para a conservação da carne e a concorrência com empresas uruguaias e argentinas (Ferreira & Cerqueira, 2012).

A crise financeira que assolou famílias pelotenses a partir de 1920, fez com que mulheres e filhas de charqueadores começassem a fazer da produção de doces finos uma atividade para manter a família. No contexto dos doces finos, a contribuição afrodescendente também se faz presente. Ao incorporarem seus saberes e fazeres na produção dos doces nas cozinhas dos casarões das elites pelotenses, a mão de obra de ex-escravizados e seus descendentes reproduziam e recriavam doces finos, como por exemplo, os quindins – oferecidos às divindades nos rituais religiosos (CERQUEIRA & FERREIRA, 2016).

Além do quindim, outros doces fazem parte de rituais religiosos de Matriz Africana. O estudo realizado pelo Mestre em Antropologia, Paulo Freitas (2019), descreve a oferenda de doces de calda de laranja azeda para o Bará, o de banana para Xangô, o de batata doce para Iansã, o de maracujá para Xapanã, o de pêssego para Oxum, geleias (morango, maçã, pera, laranja e de frutas da época), além de bolo para fatiar, rapaduras de amendoim, cocadas e balas oferecidos às crianças nas festas de Ibeji – todos produzidos através de ensinamentos orais da cultura alimentar perpassada de geração a geração entre os afrodescendentes.  

Percebe-se, então, que nesse complexo multi-étnico das tradições doceiras, cujas contribuições portuguesas, francesas, pomeranas, italianas e alemãs são reconhecidas pelo senso-comum, é preciso ressaltar a importância dos africanos no processo. 

Fontes: CERQUEIRA, F. V. | FERREIRA, M. L. M. | FREITAS, P. B. | PINHEIRO, P. dos S. | RODRIGUES, C. V.

Foto: RBS

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